Co-habitação: novos modelos de alojamento para a cidade verde e inclusiva

A co-habitação (co-housing no mundo anglo-saxónico, habitat participatif no espaço francófono) constitui um modelo alternativo de alojamento em que a partilha e a participação são valores centrais. Os anos 2000 conheceram um crescimento deste tipo de projetos na Europa, num espírito de idealismo, ecologia e reapropriação da cidade.

Nota: este artigo é uma adaptação de um trabalho realizado no âmbito do mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos que estou a fazer na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Artigo completo disponível aqui.

O meu interesse na temática da co-habitação nasce do cruzamento de reflexões suscitadas por algumas experiências pessoais.

O recente divórcio de um casal de amigos, com dois filhos, fez-me ponderar as opções que se oferecem às pessoas nessa situação. Em geral, passam a ser necessários dois apartamentos em vez de um; o uso de recursos cresce e as despesas aumentam em consequência, assim como o risco de isolamento e fragilidade das duas unidades monoparentais. Terá mesmo de ser assim? Não se leia nesta questão uma defesa do modelo tradicional de família, com ambos os progenitores a viverem juntos sob o mesmo teto com os respetivos filhos; leia-se antes uma abertura a modelos diferentes, pouco vigentes nas nossas sociedades mas que podem representar estratégias de resposta aos problemas acima evocados. E se um dos pais se juntasse a uma família amiga? E se integrasse um coletivo de progenitores sós?

Das traseiras do meu prédio tenho vista para um grande terreno, espécie de baldio resultante da demolição, há cerca de duas décadas, de um bairro operário. O terreno está nas mãos de privados a braços com dificuldades financeiras, estando vedado e inacessível há mais de 15 anos sem que nenhum uso lhe seja dado. Nem o mercado nem as autarquias conseguem gerar valor (económico, social) a partir daquele recurso.

Antigo bairro do Casal de Santa Luzia, atual baldio

Neste bairro de alta densidade habitacional, com poucos espaços verdes, seria uma enorme mais-valia poder usufruir daquele espaço. E se um coletivo de cidadãos propusesse um projeto de ocupação temporária aos privados, sob a forma, por exemplo, de horta e parque infantil? Toda a dinâmica do bairro se transformaria com o acesso a esse espaço, e com o processo coletivo associado à sua disponibilização e reconversão.

Fui-me apercebendo que estas e outras reflexões se federavam num tema comum: o da reinvenção dos espaços habitacionais, com e para as comunidades.

Uma pesquisa inicial revelou a existência de vários estudos empíricos e reflexão teórica à volta do tema, agrupados sob o conceito de co-housing. Os projetos de co-habitação (ou habitat participativo) têm-se multiplicado na Europa a partir dos anos 2000, parecendo refletir e concretizar a “transição ecológica e solidária” (na expressão feliz do governo francês) que a crise ambiental reclama.

As investigadoras Sabrina Bresson e Lidewij Tummers (2014) escrevem que “o século XXI começou com o renovar da reflexão sobre os modos de habitar a cidade, materializado nomeadamente nas iniciativas de habitação conjunta ou partilhada, situadas no cruzamento entre um discurso idealista de solidariedade e de ecologia, e uma resposta pragmática às exigências do quotidiano”. Trata-se de uma busca de alternativas à produção clássica de alojamento; e “alternativas” tem aqui uma conotação política, não no sentido de uma demarcação ou oposição radical, mas no sentido de criar espaços de ação independentes do mercado e do próprio Estado, de “mudar o mundo sem tomar o poder” (Holloway 2008, citado por Béal e Rousseau 2014).

Apesar de faltarem estudos comparativos e de longo termo que permitam avaliar com mais seriedade os impactos do habitat participativo, são apontados benefícios como:

  • Regulação da especulação imobiliária
  • Maior qualidade arquitetónica e ambiental dos edifícios
  • Maior diversidade social e intergeracional
  • Dinamização dos centros urbanos
  • Relações de boa vizinhança, solidariedade e entreajuda (com impactos ao nível do bairro)
  • Processos urbanísticos participativos
  • Limitação das desigualdades no acesso à habitação: este último ponto suscita alguma controvérsia acerca de um potencial efeito de segregação (criação de “comunidades-ilha”) e da inacessibilidade dos processos do habitat participativo aos grupos mais desfavorecidos.

Que modelos de co-habitação se estão a desenvolver no espaço europeu?

Casa de Pauw: um exemplo do espírito holandês de “Centraal Wonen”

 

A Casa de Pauw é um alojamento coletivo situado em Arnhem, na Holanda. O complexo é composto por um antigo convento e suas dependências, com uma envolvente ajardinada. Os 45 residentes atuais estão divididos por vários grupos (“woongroepen”), cada grupo partilhando uma cozinha e as instalações sanitárias. Para além do jardim, existe uma oficina e uma sala de eventos à disposição de todos.

O complexo foi ocupado por squatters em 1985, quando estava há vários anos abandonado e em estado de degradação. Os ocupantes formaram a “Associação para a Conservação da Casa de Pauw” e negociaram com o município a cedência dos edifícios, comprometendo-se a reabilitá-los num prazo de cinco anos. Sob a égide de uma cooperativa de habitação local, e em colaboração com o município, foi desenvolvido um projeto de criação de alojamento e de locais de trabalho de boa qualidade para pessoas com baixos rendimentos. Hoje a Casa de Pauw funciona em autogestão, e o coletivo paga uma renda mensal à cooperativa.

Os residentes estão organizados em grupos de trabalho, com dias de trabalho fixos, para assegurar a manutenção dos interiores e exteriores e toda a gestão. O grupo reúne-se mensalmente e edita um jornal interno.

A prática do squatting assumiu dimensões importantes na Holanda urbana dos anos 80. Mas a ocupação por si só não constitui exemplo de co-habitação. Como refere Tummers (2017) as iniciativas de co-habitação “formam parcerias com organizações de habitação (associações ou cooperativas) que fornecem apoio administrativo e/ou financeiro”. A Casa de Pauw seguiu precisamente este percurso de institucionalização, ao mesmo tempo que representa um exemplo de habitação social auto-organizada: a cooperativa que a tutela pratica rendas controladas. Existem na Holanda 54 iniciativas de centraal wonen semelhantes a esta (em tipologia, modelo de gestão e controle de rendas), sendo este apenas um entre vários modelos de co-habitação existentes no país.

Bairro Vauban em Friburgo (Alemanha): exemplo de construção sustentável e de empreendedorismo cidadão

Vauban é um exemplo de co-habitação à escala do bairro. O complexo abriu as portas no ano 2000 e alberga hoje cerca de 5 mil pessoas.

Fonte: visit.freiburg.de

A história começa em 1992, quando uma série de casernas militares são abandonadas. Quinze grupos de cidadãos associam-se e formalizam o Forum Vauban para reclamar ao município a disponibilização dessas infraestruturas. Face à mobilização cidadã, o município abandona a ideia de confiar a promoção imobiliária a privados. O plano de reabilitação é elaborado pelos cidadãos, em concertação com o município que impõe certas condições (por exemplo a existência de espaços públicos no piso térreo, como comércio e serviços). O município disponibiliza financiamentos, indexando-os à qualidade ecológica da intervenção de reabilitação.

O bairro Vauban tornou-se ícone de construção sustentável, aplicando diferentes tecnologias pioneiras: casas passivas, painéis solares, digestores anaeróbios, produção de biogás a partir de fezes, filtragem das águas usadas com recurso a plantas, entre outros. Para além disso, a estrutura do bairro resulta de uma reflexão sobre mobilidade (articulação com a linha de elétrico, ciclovias) e bem-estar social (integração de escolas e outras infraestruturas).

Fonte: makinglewes.org

As autoras Bresson e Tummers (2014) vêem no exemplo de Vauban a emergência de um modelo bottom-up de desenvolvimento urbano sustentável, no qual “as associações de cidadãos são parceiras do planeamento urbano e em que as iniciativas dos habitantes são facilitadas pelas autarquias”.

No contexto europeu da história da co-habitação, o primeiro exemplo é representativo das iniciativas de pequena escala que caracterizaram os anos 80, de cariz mais idealista, próximas do espírito “comuna”; enquanto o segundo revela a mudança de escala e de direção dos anos 2000: fala-se agora em “eco-bairros”, a sustentabilidade da construção (e dos modos de vida) afirma-se como objetivo estrutural e as intervenções tomam a dimensão de verdadeiro planeamento urbano e reinvenção da cidade.

E em Portugal?

Não me foi possível identificar um termo em português (semelhante a co-housing ou habitat participatif, de que tenho estado a usar a tradução) que designe o fenómeno multifacetado que é objeto deste artigo. Atribuo essa dificuldade à incipiência dessas práticas em Portugal: tanto quanto pude apurar, os casos são raros, isolados e díspares, não tendo ainda sido abordados enquanto manifestações de um mesmo fenómeno. Ao mesmo tempo, Portugal tem, sim, uma história de cooperativismo habitacional (as “cooperativas de habitação económica”), e é por aí que faz sentido começar a traçar o retrato pretendido. O habitat participativo, na sua versão institucionalizada, formaliza-se quase sempre enquanto cooperativa ou associação.

De notar que deixei deliberadamente de lado as comunidades intencionais constituídas à volta de um projeto “neo-rural”, em que há sem dúvida construção e manutenção colaborativa do habitat, mas em que a rejeição do modo de vida urbano é valor federador. Existem muitos exemplos deste tipo de comunidade em Portugal, e trata-se aqui de facto de um movimento que tem já visibilidade enquanto tal. No entanto, este artigo interessa-se apenas pelas experiências e possibilidades da colaboração habitacional em meio urbano.

Segundo Guilherme Vilaverde, presidente da direção da FENACHE (Federação Nacional das Cooperativas de Habitação Económica), são atualmente muito escassos os exemplos de cooperativas de habitação com atividades de promoção em curso. Das mais de 300 cooperativas que já operaram em Portugal, apenas 50 estarão hoje em atividade. No entanto, é importante notar que essa atividade diz sobretudo respeito à reabilitação, conservação, manutenção, gestão de condomínios, espaços comuns e diversos equipamentos sociais, e não à promoção de novos projetos.

O único exemplo de projeto habitacional cooperativo comparável aos acima descritos fica em Matosinhos e constitui uma das últimas realizações de fôlego do cooperativismo habitacional português:

Ponte da Pedra, primeiro empreendimento cooperativo nacional de construção sustentável

Fonte: lidera.info

A conceção e implementação da Ponte da Pedra constituíram verdadeiros processos participativos, com reuniões semanais entre arquitetos, construtores e cooperadores; sessões abertas de apresentação e discussão do projeto; elaboração de um “Manual do Cooperador Proprietário” e edição de um boletim trimestral de informação; e uma “intensa prática de divulgação e de disseminação do projeto” junto da sociedade em geral (Coimbra 2008).

Este projeto recebeu o prémio do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana 2007 para promoção cooperativa.

Se o cooperativismo habitacional tradicional está algo moribundo e não deixa antever grande vigor na promoção de projetos de co-habitação, outras instituições há que têm chamado a si esta temática e desenvolvido projetos muito promissores:

Critical Concrete: DIY, investigação e empreendedorismo social como ingredientes de um projeto de co-habitação ainda por concretizar

 

Critical Concrete é uma associação nascida em 2015 no Porto por iniciativa do empreendedor francês Samuel Kalika. Em paralelo com um trabalho de investigação na área da construção sustentável (no qual se inclui o aproveitamento de resíduos industriais para a criação de novos materiais de construção), a associação intervém na melhoria das condições de habitação em bairros da freguesia de Ramalde, através de um trabalho de DIY (faça você mesmo) em que estudantes e beneficiários deitam mãos à obra no âmbito de uma Escola de Verão.

Samuel e o seu sócio João Moura estão agora a maturar um projeto imobiliário de interesse social em que as características principais serão o uso misto do espaço (habitação combinada com atividades económicas e artísticas) e um trabalho arquitetónico inovador alicerçado na investigação em curso. A Critical Concrete será a promotora do projeto; investidores privados serão chamados a financiá-lo, adquirindo partes da empresa a ser criada e podendo esperar um retorno de 3 a 5% sobre o capital investido, segundo os cálculos já realizados pela equipa.

O objetivo é criar habitação ambientalmente sustentável, praticar rendas acessíveis, prevenir a especulação imobiliária e fomentar a heterogeneidade social, com recurso a um modelo de “sócio-promoção imobiliária” semelhante ao aplicado, com sucesso, em Berlim, na reconversão de uma tipografia industrial (ExRotaprint).

Como este, há outros projetos de promoção imobiliária alternativa a acontecer em Portugal – ainda a ser cozinhados, ainda por formalizar, ainda por provar. Sei-o pelas conversas cruzadas que vou tendo com diferentes pessoas (arquitetos, empreendedores sociais), ficando a impressão, forte, de que muito vai acontecer nos próximos anos nesta área.

Aceder ao artigo completo (incl. bibliografia)

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