Com a eleição de um novo Governo há temas que transcendem ideologias e disputas partidárias e exigem consenso democrático. A transição para uma economia circular é um desses temas: não é uma opção ideológica, é uma exigência estratégica e a única solução viável para enfrentar simultaneamente a crise ambiental, económica e social do nosso tempo.
A economia linear – assente na extração, produção, consumo e resíduos – tornou-se estruturalmente insustentável. Consome demasiados recursos, gera níveis insuportáveis de resíduos e agrava a vulnerabilidade económica e social. Portugal, está perigosamente atrasado nesta transição. A taxa nacional de circularidade – que mede a percentagem de materiais reciclados e reintegrados na economia – é de apenas 2,8%, muito abaixo da média europeia de 11,8% e distante de países como a Itália (20,8%) ou os Países Baixos (30,6%) (Eurostat, 2023). Esta ineficiência no uso de recursos reflete-se numa elevada dependência de matérias-primas importadas e portanto numa fragilidade geoestratégica considerável.
A economia circular: não é só ambiente, é estratégia económica
É fundamental compreender que a economia circular não é apenas uma causa ambiental. É uma estratégia para a resiliência económica, inovação industrial e soberania de recursos. Poderia reduzir as emissões de gases com efeito de estufa da UE em 45% até 2030 (Ellen MacArthur Foundation, Institute for European Environmental Policy, 2021) e as emissões de aço, plásticos, alumínio e cimento em 56% até 2050 (Materials Economics, McKinsey, 2022). Além disso, pode gerar às empresas europeias poupanças líquidas anuais entre 250 e 465 mil milhões de euros (12% e 23%) em custos com materiais (ECOS). Apesar deste potencial, Portugal continua sem uma estratégia nacional atualizada. Espera-se que o novo Governo priorize a divulgação e implementação urgente do novo Plano de Ação para a Economia Circular (PAEC), condição indispensável para coordenar os diversos atores e estabelecer metas vinculativas. Algumas empresas, startups, municípios e organizações como a Circular Economy Portugal, já estão em movimento, mas a falta de instrumentos e medidas públicas eficazes traz atrasos numa transição que precisa de ser rápida e ambiciosa.
Estamos todos no mesmo barco
Durante a pandemia de COVID-19, assistimos a uma colaboração histórica entre partidos para enfrentar a crise sanitária. Essa capacidade de colocar o interesse comum acima das divisões ideológicas deve inspirar a resposta à crise ecológica e económica atual. A economia circular precisa de um compromisso político transversal, sustentado por políticas corajosas, investimento público e privado, e participação da sociedade civil.
A urgência é visível nos números. Portugal Continental gera por ano 5,3 milhões de toneladas de resíduos urbanos – mais de meia tonelada por habitante por ano ou 1,4 kgs por habitante por dia – e 59% acabam em aterro, longe da meta europeia de 10% até 2035 (APA). E os resíduos urbanos representem apenas 17% do total de resíduos produzidos no país (outros incluem industriais, da construção civil, agrícolas,…). Mais alarmante ainda, como alertou o secretário de Estado do Ambiente em março de 2025, apenas 13 dos 35 aterros existentes têm mais de 20% de capacidade disponível. Em regiões como Algarve, Norte e Lisboa e Vale do Tejo a capacidade pode esgotar-se já em 2027 se não forem adotadas medidas urgentes (Diário de Notícias, 7/03/2025). É essencial implementar o Tratamento Mecânico e Biológico para os resíduos indiferenciados, alargar a recolha seletiva com sistemas de alta eficiência, como o Sistema de Depósito com Retorno, e promover o tratamento na origem dos biorresíduos – seja através de compostagem doméstica, comunitária ou de modelos porta-a-porta, como já sucede na Maia e em Guimarães. Estamos à beira do colapso do sistema de gestão de resíduos. A incineração não é solução: destrói recursos, bloqueia a inovação e trava a transição ecológica. A Circular Economy Portugal defende que cada euro investido em incineração perpetua a economia linear e afasta o investimento na prevenção, reutilização e reciclagem.
Mas Portugal não está sozinho. Na União Europeia, a produção total de resíduos atingiu 2.233 milhões de toneladas em 2022, com cada cidadão a gerar em média quase 5 toneladas de resíduos (Eurostat, 2023). O desafio é continental, mas as respostas têm de ser nacionais e locais. Se cada país assumir responsabilidade pelo seu impacto e pelo exemplo que dá, cria-se uma dinâmica internacional de mudança. Veja-se o exemplo da França, com a sua mais recente lei contra a “moda rápida” ou fast fashion.
França dá o exemplo: coragem política e consenso
A recente aprovação da lei francesa contra a fast fashion é um exemplo de ação política transformadora e de consenso partidário. A nova legislação, aprovada este mês com 337 votos a favor e apenas 1 contra, define legalmente a moda “ultra-efémera”, como a Temu e SHEIN, impõe eco-contribuições financeiras entre 5€ e 10€ por peça (até 50% do PVP), proíbe publicidade em redes sociais, sanções para influenciadores e obriga à divulgação de mensagens de consciencialização ambiental junto dos consumidores. Embora as sanções visem sobretudo empresas que se enquadram na definição de fast fashion – baseada no número de modelos lançados, como é o caso da SHEIN, que introduz cerca de 10.000 novos produtos por dia – e deixem de fora outros gigantes do setor, como a Inditex ou a H&M (Le Monde, 10/06/2025), trata-se ainda assim de uma medida inédita com o intuito de reduzir o impacto ambiental de uma das indústrias mais poluentes do mundo, responsabilizando os grandes produtores por práticas de produção insustentáveis e por incentivar o consumo descartável desenfreado.
O caminho é possível. Portugal tem leis, falta desbloquear a ação pública
Dito isto, já existem em Portugal quadros legais e políticas em vigor relevantes que sustentam a transição para a economia circular, desde o regime geral da gestão de resíduos (RGGR) atualizado em maio de 2025 que transpôs a Diretiva (EU) incluindo medidas de planeamento e medição de resíduos alimentares e proibição de incineração ou deposição em aterro de resíduos destinados à reciclagem, à estratégia de compras públicas verdes (ECO360 2030), passando ainda por outras diretrizes europeias transpostas para Portugal tal como o Ecodesign (ESPR) – que atua a nível do produto e regula a conceção – e a Taxonomia Europeia – que atua a nível de actividade económica e regula o que não é sustentável para investimento e política. Estes são alguns exemplos. Contudo, as medidas existentes continuam fragmentadas entre várias entidades públicas criando uma clara falta de liderança e de visão integrada. Para além disso, a instabilidade política, tanto a nível governamental como municipal, agrava o problema: mudanças frequentes de titulares de cargos políticos, alterações de prioridades partidárias e incerteza sobre financiamentos criam um ambiente de imprevisibilidade que desincentiva o investimento das empresas, dificulta o trabalho das ONGs e das próprias autarquias em projetos de economia circular.
Como reiterado por Hugo Conzelmann do Instituto Nacional da Economia Circular francês (INEC), é necessária a criação de um “balcão único” para facilitar a implementação e o acompanhamento das medidas de transição circular (Terra Nova, 14/02/2025). Poderia ser também um “delegado interministerial” – uma figura com autoridade transversal sobre vários ministérios – com mandato político e técnico para coordenar estratégias, desbloquear conflitos, garantir coerência entre setores e acompanhar resultados.
A transição para uma economia circular deve ser uma prioridade e compromisso nacional de longo prazo para este Governo e independente de ciclos eleitorais, com capacidade de dar confiança e previsibilidade a quem pretende investir na transformação estrutural da nossa economia. A urgência é inequívoca: ou transicionamos com coragem e ação – ou colapsamos sob o peso de um sistema linear obsoleto que já não serve o ambiente, nem a economia, nem as nossas gerações.
Ana Matos Almeida
Presidente, Circular Economy Portugal