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Economia Circular: a melhor aliada da descarbonização

O Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 esteve em consulta pública até final de Fevereiro. A CEP analisou-o e submeteu o seu parecer. Partilhamos agora uma síntese dessa reflexão, tentando revelar a relação forte, mas nem sempre evidenciada, entre economia circular e descarbonização.

O que é o RNC 2050?

Na COP22, em 2016, o governo português assumiu o compromisso de descarbonizar o país até 2050. A neutralidade carbónica significa o  equilíbrio entre as emissões antropogénicas de gases com efeito de estufa e sua absorção por sumidouros, tais como as florestas e os oceanos.

O Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 traça três cenários para Portugal, aos quais chamou, com apurado sentido de metáfora, “Fora de Pista”, “Pelotão” e “Camisola Amarela”. O cenário fora de pista representa basicamente uma trajetória “business as usual” em que nada de fundamental se altera e em que, consequentemente, a neutralidade não é atingida (ainda que as emissões baixem em relação às atuais). Os outros cenários correspondem a trajetórias “tecnicamente exequíveis, economicamente viáveis e socialmente aceites” que permitem atingir (pelotão) ou até superar (camisola amarela) o objetivo de zero carbono em 2050. O documento detalha a evolução dos quatro setores mais relevantes para a matéria (Energia, Transportes, Resíduos, Agricultura/Florestas/Uso do solo), sendo que a economia circular é transversalmente incorporada na modelização.

O RNC 2050 demonstra a exequibilidade do resultado líquido zero emissões, serve de guia para a elaboração de políticas públicas e de bitola para acompanhar e interpretar os desenvolvimentos do país em matéria ambiental e socioeconómica.

Dispor de um documento como o RNC2050 é extremamente valioso para Portugal. As observações que fazemos vão no sentido de maximizar o impacto positivo que este instrumento pode vir a ter.

1. Oportunidade perdida: modelação de políticas públicas

A trajetória para a obtenção da neutralidade carbónica é feita de escolhas, essencialmente políticas, e não só de resposta a fatores externos, como sejam a evolução tecnológica ou as preferências dos consumidores. O RNC2050 peca por se focar nestes últimos. Entendemos que o RNC2050 teria sido uma boa oportunidade para se compreender o impacto de medidas como o preço mínimo de CO2 em determinados setores, incentivos fiscais à circularidade da economia, transportes públicos exclusivamente elétricos até 2030 ou o fim da utilização do gás em meio residencial até 2030. Por não considerar o impacto das políticas públicas, o RNC2050 apenas reflete uma parte da trajetória possível para a neutralidade carbónica, ficando por demonstrar os impactos positivos ou negativos que determinadas medidas terão sobre a mesma.

2. Maior ambição no período 2019-2025

Consideramos que evoluções mais aceleradas no período 2019-2025 são possíveis em alguns setores. A viabilidade técnica, as inovações em curso e os potenciais efeito de políticas públicas validariam pressupostos mais ambiciosos nos domínios da energia, mobilidade e edificado:

2.1. Energia

Na redução de emissões a atingir em 2030, o encerramento das centrais a carvão de Sines e do Pego tem um peso considerável (menos 11 Mton de CO2/ano, ou seja, 16,2% das emissões nacionais). De acordo com o mais recente Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento, a segurança energética do país não é posta em causa com o fecho destas centrais. Isto equivale a dizer que há condições para avançar no curto prazo e que dessa feita as reduções a alcançar em 2030 poderiam ser alcançadas já em 2025.

Entendemos que o RNC2050 poderá considerar a instalação de uma maior capacidade de energia solar durante a próxima década, alinhando os seus objetivos com aqueles inscritos no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC). O amadurecimento tecnológico (ex: H2 ou baterias) e o surgimento de novos modelos de negócios na área da flexibilidade de redes permitem projetar maior evolução na expansão da capacidade de energia renovável, sem que tal coloque em causa a segurança do abastecimento.

2.2. Mobilidade

Áreas metropolitanas. Ao nível das áreas metropolitanas, o RNC2050 poderia ter modelado um maior aumento da utilização do transporte público. Tal poderá ser a consequência de programas de redução de tempos de percursos entre pontos de elevada procura (ex: resultante, por exemplo, do investimento em infraestruturas), ou de redução tarifária (como aquela a implementar em Abril de 2019). Por este motivo, entendemos que a evolução da procura do transporte público tem mais potencial do que aquela modelada no RNC2050.

Ligações interurbanas. O aumento da competitividade do modo ferroviário, através de ligações de velocidade elevada entre cidades de média dimensão, constitui um importante contributo para a descarbonização dos transportes, e representa um potencial de aumento da procura do modo ferroviário não incluído no RNC2050. Dado que o RNC2050 se baseia na evolução da procura considerada no Ferrovia2020, um programa orientado para as ligações de mercadorias, entendemos que deveriam ter sido usado outros pressupostos.

3. Aspetos problemáticos

3.1. Aviação internacional não foi incluída no balanço carbónico.

O RNC2050 apenas considera as emissões de aviação correspondentes a voos domésticos, o que é uma consequência da arquitetura do acordo de Paris. Contudo, a aviação internacional tem tido um aumento muito elevado de emissões (ver figura 2). No seu conjunto, a aviação doméstica e internacional teve um aumento de 30% entre 2015 e 2018. Projetando, de forma conservadora, um aumento anual de 3-5% de emissões da aviação para o período 2018-2030 (para o qual o eventual aumento da capacidade aeroportuária na zona de Lisboa também dará o seu contributo), podemos concluir que em 2030 o setor da aviação só será ultrapassado em emissões pelo setor da indústria e pelo restante setor dos transportes. Ficando fora do roteiro, este aspeto passa despercebido – quando haveria muito a ganhar considerando e incentivando a ferrovia de alta velocidade como alternativa.

3.2. O RNC2050 não considera o impacto carbónico do consumo de produtos importados.

Ora estes têm uma pegada carbónica associada. As reportadas reduções de emissões dos últimos anos na Europa são nitidamente menos acentuadas se se tiver em conta as importações. É importante expor este aspeto no  RNC2050 a fim de prevenir eventuais deslocalizações de emissões na trajetória portuguesa.

3.3. Floresta – captação de emissões sobrevalorizada.

Entendemos que a capacidade de sumidouro está sobreavaliada no RNC2050. Tendo presente o aumento do risco de incêndio florestal provocado pelas alterações climáticas, seria prudente considerar valores mais conservadores para a capacidade de sumidouro da floresta portuguesa.

4. Não há neutralidade carbónica sem economia circular

Nem sempre são claros neste roteiro os pressupostos assumidos pelos autores em termos de economia circular, mas ela é evocada em todas as áreas: a produção total de resíduos só diminui acentuadamente porque são modelizadas “medidas de incentivo ao combate ao desperdício alimentar”; o edificado gera menos emissões porque se projetam “partilha e eficiência nos serviços”; o impacto da indústria do cimento diminui porque se prevê a substituição de parte da matéria-prima virgem por resíduos de construção e demolição; o aumento da capacidade de incineração de resíduos faz parte do cenário “fora de pista” (mas os projetos de incineradoras para o Porto e São Miguel continuam em cima da mesa! É preciso eliminá-los já).

Está demonstrado que a extração de recursos é responsável por metade das emissões globais de CO2 e nesse sentido a circularidade é fundamental para a descarbonização.

Alguns dos pressupostos assumidos no roteiro surpreenderam-nos por ficarem aquém do potencial da economia circular. Por exemplo: na indústria do vidro projeta-se um aumento importante do vidro reciclado – mas não se fala em reutilização das garrafas, que seria muito mais eficaz. Na indústria cimenteira, a utilização de combustíveis derivados de resíduos (CDR) em vez de fósseis é apontada como medida de descarbonização: assume-se equivalência entre CDR e biomassa, quando os CDR têm um teor de biomassa de 60% (incluindo-se nesta percentagem têxteis e borracha).

5. E agora? Os passos seguintes para o RNC2050

O RNC2050 baseia-se num conjunto de cenários, cuja implementação dependerá em grande medida da ambição do poder político e da sua capacidade de intervenção e de articulação junto dos diferentes setores da sociedade. Assim, parece-nos importante complementá-lo das seguintes formas:

5.1. Lei de Bases do Clima.

É importante traduzir as trajetórias do RNC2050 numa agenda política de médio/longo prazo com metas e medidas concretas. A inclusão de metas setoriais de CO2 numa Lei de Bases do Clima acelerará a implementação do RNC2050, e aumentará a previsibilidade destas trajetórias junto dos agentes económicos e decisores.

5.2. Estrutura de gestão/monitorização do RNC2050.

Seria desejável instituir uma entidade que assegure funções de aconselhamento ao Governo e legisladores, de monitorização do processo, e de análise da compatibilidade entre as diferentes políticas públicas e as metas do RNC2050.

A neutralidade carbónica é uma necessidade, um dever, uma urgência! Nas palavras da investigadora Júlia Seixa, co-autora do RNC2050 e membro do Conselho Consultivo da CEP:

“Não sabemos como será viver num Planeta com uma temperatura média superior a 2ºC, pois representará uma rota totalmente nova para a biosfera, e seguramente perigosa para a humanidade. A produção de alimentos, o ciclo da água e tudo que a biosfera nos fornece para a vida que temos levado, estará em causa. Não imagino as consequências sociais e económicas de um futuro com estas características. Governos e empresas devem rodear-se de ciência, para informar as suas decisões pois, em última análise, são eles os responsáveis morais pelo estado do Planeta que deixaremos às futuras gerações. Com o que sabemos hoje, já não há margem para erros!” (fonte)

(esta artigo foi redigido por Artur Patuleia, com a colaboração de Lindsey Wuisan, Andreia Barbosa e Cátia Godinho)

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