O que é que a alimentação e a agricultura têm a ver com economia circular? A relação vai muito além das questões do desperdício alimentar e da compostagem. A economia circular baseia-se no uso sustentável de recursos naturais e no respeito pelos limites do planeta. A indústria agroalimentar, que tem uma imensa pegada ambiental, é um sector prioritário para aplicar princípios circulares. Por essa razão, a Circular Economy Portugal (CEP) está a organizar o festival Alimenterra (27-29 Março) dedicado a um sistema alimentar circular e sustentável. Filmes, debates e atividades vão ajudar-nos a perceber os impactos das atuais formas de produzir e consumir alimentos, e inspirar-nos a redesenhar o sistema alimentar.
A agricultura industrial moderna preocupa-se bem mais com lucro a curto prazo do que com o valor a longo prazo para a sociedade e o ambiente. É verdade que, graças a ela, foi possível aumentar exponencialmente a produtividade e alimentar uma população crescente a preços muito baixos. Mas os custos ambientais e sociais – as chamadas externalidades – foram imensos. Alguns exemplos: a erosão1 e a perda de biodiversidade resultantes do uso insustentável do solo ; a escassez de água decorrente de uma irrigação ineficiente (em Portugal, a agricultura é o maior consumidor de água2); e a poluição e os gases com efeito de estufa3 associados ao uso de grandes quantidades de produtos químicos e combustíveis fósseis.
Em termos sociais, devido ao desequilíbrio de poder na cadeia de abastecimento, que beneficia sobretudo os supermercados, muitos agricultores (especialmente nos países em desenvolvimento) não recebem um salário decente. Aqueles que desejam cultivar de forma sustentável, em pequena escala, não recebem apoio (financeiro) suficiente, uma vez que os subsídios da União Europeia se baseiam no número de hectares produtivos. Em geral, os agricultores e os seus produtos são subvalorizados na nossa sociedade. Os consumidores estão habituados a uma oferta de comida barata e abundante, e ignoram o esforço necessário para a colocar nos nossos pratos. Em 2015, as famílias portuguesas despenderam apenas 14,3% do seu orçamento em comida, significativamente menos do que em anos passados4.
Claramente, este modelo é altamente insustentável e não pode continuar a longo prazo. Um novo modelo é necessário. Não se trata apenas de promover a eficiência de recursos na produção agrícola, mas pôr a agricultura a fortalecer os ecossistemas naturais e a biodiversidade, assegurando rendimentos adequados aos agricultores. Isto implica restruturar integralmente o modelo económico e a cadeia de valor, bem como as mentalidades das empresas e dos consumidores.
Nesta transição, as cidades e seus consumidores urbanos têm um papel fundamental a desempenhar uma vez que 80% dos alimentos serão consumidos em cidades em 2050. Por esta razão, o festival Alimenterra quer sensibilizar a cidade de Lisboa. Como plataforma para discussão, o Alimenterra pretende reunir os stakeholders relevantes – não apenas produtores e consumidores, mas também académicos eorganizações (não-)governamentais.
Na publicação “Cities and Circular Economy for Food”, a Fundação Ellen MacArthur delineou os principais desafios para o sistema alimentar. Tudo começa com a produção sustentável (baseada na agroecologia) e a distribuição através de cadeias de abastecimento curtas, apoiando a produção local e usando o mínimo de embalagens. Em segundo lugar, o desperdício alimentar pode ser evitado através da redistribuição, enquanto as estratégias de bioeconomia ajudam a transformar subprodutos em fertilizantes orgânicos, biomateriais e medicamentos. Por último, os produtos alimentares saudáveis e sustentáveis devem ser facilmente acessíveis a todos e não apenas a uma elite rica.
Do campo ao garfo, mudanças fundamentais terão de acontecer. Por onde começar neste sistema tão complexo? Primeiro, é necessária uma visão comum sobre alimentação sustentável a nível europeu, nacional e da cidade. A Comissão Europeia anunciou recentemente a “Farm to Fork Strategy”, e a nível nacional há a “Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica” e o “Roteiro para a Neutralidade Carbonica 2050”. Mas isto ainda fica aquém do necessário. Para além das visões teóricas, são precisos programas ambiciosos com medidas concretas que façam a diferença na prática e não apenas no papel. Esta diferença já está a acontecer pela mão de muitos pioneiros – que estarão em destaque durante o Alimenterra.
Lisboa é capital verde europeia neste ano de 2020, e o município – que é membro da Food Initiative da Fundação Ellen MacArthur, e nosso parceiro neste festival – tem estado atento ao tema da alimentação. As políticas e iniciativas municipais de alimentação são uma alavanca fundamental para mudar o sistema, tendo como pontos fulcrais os critérios de sustentabilidade das compras públicas no setor alimentar, a promoção de circuitos curtos de distribuição e da produção local, o estímulo às dietas pobres em carne, e a prevenção do desperdício. Nestas áreas, sociedade civil e eco-empreendedores desenvolvem trabalho valioso que muito beneficiaria com o apoio ainda mais forte da CML. Encorajamos o município a levar o mais longe possível esta capital verde, investindo ao máximo na concretização de um sistema alimentar circular e sustentável.
- “No Alentejo, desde o início da campanha do trigo em 1929, intensas mobilizações de solos, extensa mecanização agrícola e escassez de períodos de descanso destruíram a sua camada superficial; cumulativamente, processos de erosão intensa resultaram na perda de fertilidade do solo”. (Branco et al. 2014).
- Portugal iniciou o século XXI com uma procura anual de água no território continental estimada em cerca de 7.500 milhões m3, no conjunto dos três setores: urbano, agrícola e industrial. O setor agrícola é, em termos de volume, o maior consumidor a (>80%).” Fonte: http://apambiente.pt/_zdata/CONSULTA_PUBLICA/2012/PNUEA/Implementacao-PNUEA_2012-2020_JUNHO.pdf
- Em Portugal, em 2015, a agricultura foi responsável por 10% das emissões de GEE. https://descarbonizar2050.pt/roteiro/agricultura-florestas/
- Despesas anuais das famílias portuguesas em produtos alimentares e bebidas não alcoólicas de 2000 para 2015: de 18,7% para 14,3%. Dados portugueses do INE. Fonte: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=281136861&DESTAQUESmodo=2. No Reino Unido as despesas das famílias com alimentação baixaram 50% ao longo dos últimos 60 anos. https://www.bbc.com/news/business-45559594