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Penso, logo habito: arquitetura participada e sustentável

O edificado consome 40% da energia produzida na Europa. Da extração e processamento dos materiais de construção ao aquecimento dos espaços, a pegada carbónica e material dos lugares onde vivemos e trabalhamos é imensa. Ao mesmo tempo, 19% da população portuguesa vive em situação de pobreza energética, muitas vezes em casas de baixa qualidade, com repercussões na saúde. E o setor da construção é dos menos circulares no nosso país; tanto o ecodesign como a reutilização e a reciclagem de materiais de construção são muito incipientes.
A transição ecológica exige novas formas de habitar. Qual é o papel da arquitetura neste processo? No âmbito do Festival Umundu, organizámos uma conversa sobre o tema. Connosco na bela biblioteca de Alcântara estiveram Samuel Kalika, da Critical Concrete, e Rúben Teodoro, do Coletivo Warehouse. [Foto de capa: Critical Concrete].

@ Pierre François Docquir
@ Pierre François Docquir

Renovar e reabilitar: da pobreza energética à riqueza do diálogo

90 % dos portugueses não têm conforto térmico em casa. Não são apenas as pessoas em situação de pobreza que conhecem os invernos das mantas e da humidade; a má qualidade do edificado é geral e afeta também as classes médias. Esta entrevista do investigador João Pedro Gouveia (CENSE – UNL) é esclarecedora. Só no início dos anos 90 é que Portugal produziu regulamentos para as características térmicas das construções (isolamento, ventilação, produção de energia), quando outros países europeus se tinham dotado desses instrumentos décadas antes. Assim, o boom de construção a que assistimos nos anos 80 e 90 resultou num parque habitacional sem isolamento, com vidros simples e sem soluções de climatização integradas.

É preciso renovar e reabilitar. Não só para melhorar o desempenho material e energético dos edifícios, mas também para devolver às cidades os seus prédios degradados e devolutos – espaços desaproveitados que empurram pessoas para a periferia, com custos energéticos e de qualidade de vida. Esta necessidade está presente em várias regiões da Europa, e por isso a UE quer promover até 2030 uma Renovation Wave.

No PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) português, há verbas importantes a serem disponibilizadas neste âmbito. Trata-se, por um lado, de melhorar o desempenho material e energético dos edifícios, e por outro, mais importante, de fomentar o acesso à habitação, nomeadamente habitação a custos acessíveis. O património público devoluto do Estado, que é significativo e deverá ser reabilitado para esse fim, tem uma linha de financiamento dedicada. Diz o plano que “a promoção de construção nova deve proporcionar um patamar de necessidades de energia, no mínimo, 20% mais exigente que os requisitos NZEB (Nearly Zero Energy Building), no que respeita ao consumo de energia primária, bem como, no caso de obras de reabilitação, uma melhoria do desempenho energético dos edifícios.”

A Critical Concrete conhece bem as deficiências da habitação em Portugal, sobretudo no Porto e arredores, nos bairros de baixos rendimentos que constituem o seu terreno de ação preferencial. Em projetos que contam normalmente com o envolvimento de autarquias e da população residente, planeia e executam intervenções de melhoria de espaços residenciais e públicos. Ao betão e alvenaria preferem materiais biogénicos (e de desempenho térmico superior) como a madeira e o cânhamo – o que não deixa de provocar estranheza junto dos beneficiários das intervenções. É mais um entre os muitos temas do diálogo entre arquitetos e usuários, a tal dimensão participada que pauta o trabalho tanto da Critical Concrete como do Coletivo Warehouse.

Falou-se muito de participação e dos seus desafios. Convidar o futuro usuário de um espaço (público) a participar na sua conceção não se resume a perguntar-lhe o que deseja. É preciso previamente abrir horizontes (trazer possibilidades para cima da mesa, romper as barreiras do que é familiar) e dispor de instrumentos (imagens, dinâmicas lúdicas) que facilitem a formulação desses desejos. Num projeto para uma biblioteca escolar no Senegal, os arquitetos do Coletivo Warehouse começaram por pôr as crianças a desenhar a planta da biblioteca existente, para as familiarizar com a linguagem visual da arquitetura.

Reutilizar: há vida depois da desconstrução

Segundo números da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Portugal produziu em 2018 cerca de 2,5 milhões de toneladas de resíduos de construção e demolição. Isto representa 16 % do total de resíduos gerados nesse ano. Na Europa, o peso médio anual desses resíduos no cômputo total é de 35 %. Quem conhece o setor da construção em Portugal sabe que é prática comum o abandono de entulho de obra no mato e na berma da estrada; não é arriscado concluir que a maior parte do lixo gerado na reabilitação e edificação não entra nas contas da APA. Como se evolui de uma situação em que até os números dos resíduos são desconhecidos para práticas construtivas baseadas na reutilização? O caminho é árduo e cheio de barreiras.
A lei portuguesa obriga à incorporação de 10 % de materiais reciclados em todas as obras públicas. Mas para reduzir o desperdício no setor da construção, não bastam imposições legais como esta (haja meios para as implementar e fiscalizar); é preciso torcer o mercado. Enquanto os agregados naturais continuarem a ser tão baratos, o aproveitamento não tem como se desenvolver, e é por isso que a ideia de aplicar taxas aos minerais de construção virgens vai ganhando força (e exemplos) na Europa.
O PAEC (Plano de Ação para a Economia Circular) europeu postula, entre outras coisas, a realização de auditorias de resíduos antes das obras de demolição e renovação. Identificar e documentar materiais é o primeiro passo para promover a sua reutilização. Depois, seguem-se desafios vários: desenvolver aplicações viáveis para os materiais secundários; encontrar utilizadores; aceder a espaços de armazenamento; e angariar a mão de obra especializada (escassa e cara) para desconstruir e preparar estes materiais.
Quando se esbarra em permanência nas dificuldades inerentes a um sistema de construção assente numa lógica linear dos processos construtivos atuais, é importante o desenvolvimento de experiências piloto que permitam ir testando e divulgando alternativas. O projeto da cozinha do Bairro das Terras da Costa (2012-2014), em que o Coletivo Warehouse esteve envolvido, demonstra como as estruturas podem ter várias vidas. A cozinha comunitária, idealizada pelos habitantes deste bairro ilegal, foi construída com madeira vinda do projeto da Casa do Vapor (centro cultural efémero, ativo durante o verão de 2013), que por sua vez era já um reaproveitamento de estruturas criadas no âmbito da Capital Europeia da Cultura (2012), em Guimarães.

Demonstrando o potencial da desconstrução seletiva e reutilização a uma escala superior, o projeto Cadran Solaire, que decorreu nos arredores de Grenoble (França) em 2021, merece análise. Um hospital militar desafetado foi integralmente desconstruído; para promover a reutilização de recursos e o envolvimento da comunidade, foi criada uma loja pop-up no próprio estaleiro, aberta aos fins de semana, onde as pessoas podiam não só adquirir materiais provenientes da desconstrução como também frequentar workshops de upcycling em que se experimentavam transformações e aplicações criativas para os recursos em questão.

Ecodesign: projetar com e para os ciclos dos materiais

O que acontece quando se projeta um edifício de raiz numa perspetiva de economia circular? Olhemos para este outro exemplo vindo de França. Aqui, o dono de obra é a Envie, uma rede de 50 empresas de inserção cuja atividade central é a recolha e processamento de equipamentos elétricos e eletrónicos descartados. Em França, a empresa de inserção corresponde a uma figura jurídica particular, sendo seu objetivo proporcionar um emprego de transição a pessoas com dificuldade de acesso ao mercado de trabalho normal. Estamos então a falar de uma organização com uma dupla missão, social e ambiental.

O edifício que a Envie criou em Paris serve de escritório, loja social e laboratório circular. Vejamos algumas das suas particularidades: cobertura verde; design frugal (sem acabamentos); forte aposta na reutilização, que representa 45% do peso dos materiais (a madeira da fachada provém de stock morto, as tintas são desperdícios, divisórias e mobiliários incorporam materiais de recuperação – como as inconfundíveis portas das máquinas de lavar roupa).

Também aqui estamos perante um projeto demonstrador, nascido da vontade manifesta de derrubar barreiras e explorar possibilidades. No setor da construção e reabilitação em Portugal, projetos destes são extremamente necessários. Organizações como a Critical Concrete e o Coletivo Warehouse levam anos de trabalho nesta área, mas a arquitetura sustentável e participada precisa de sair do nicho e tornar-se uma verdadeira ferramenta da transição ecológica.


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