Textile fiber made from recycled clothing and linens, ready for processing into insulation and absorbents, on display at The Eco Experience building at the Minnesota State Fair on August 29, 2018.

O guarda-roupa e o caixote do lixo: inquérito sobre a Responsabilidade Alargada do Produtor no setor têxtil

A lei portuguesa prevê a instauração, até final de 2024, de um sistema de responsabilidade alargada do produtor para o têxtil. O objetivo é evitar os milhares de toneladas de roupa usada que anualmente acabam no lixo indiferenciado. Caberá aos fabricantes a responsabilidade pelos impactos dos têxteis uma vez atingido o seu “final de vida”. O que significa isto na prática?

Os contornos legais do sistema ainda estão por desenhar, mas a CEP reuniu algumas pistas.

Não creio ser uma consumidora desenfreada de roupa, mas ainda assim tenho roupa para dar e vender. O meu filho cresce e a roupa deixa de lhe servir; há camisolas minhas que vão murchando com o uso e que permanecem dobradinhas na gaveta… De vez em quando faço uma seleção. Vendo o que está em melhores condições (sou fã da Kid to Kid) e deposito o restante num contentor da Cáritas. Sei (até certo ponto) o que acontece a estes artigos – visitei em Rio de Mouro o armazém da Cooperativa Esperança, a estrutura que processa os materiais recolhidos nestes contentores. Alguma roupa é usada pela Cáritas nas suas atividades de ação social, mas a grande maioria do têxtil é exportado, sobretudo para o Médio Oriente.

Contentores como os da Cáritas (que podem pertencer a organizações da economia social ou a empresas comerciais) existem um pouco por todo o país, ainda que com maior densidade nos grandes centros urbanos. Apesar disso, muita roupa acaba no lixo indiferenciado. Foram 171 mil toneladas em 2019, representando 4,27% da totalidade dos resíduos não recolhidos seletivamente em Portugal Continental (cálculo efetuado a partir de dados da Agência Portuguesa do Ambiente).

É para dar a volta a esta situação que a lei n.º 52/2021 prevê que os têxteis sejam englobados num sistema de responsabilidade alargada do produtor (RAP) – semelhante ao já existente para fluxos como o das embalagens ou o dos equipamentos elétricos e eletrónicos.

Os fabricantes de roupa passam a ser responsáveis pelos resíduos? Como assim?

Os contornos do futuro sistema ainda estão por definir. No caso das embalagens, existem diferentes entidades gestoras que cobram aos produtores e distribuidores uma taxa (“ecovalor”), financiando assim as atividades de recolha seletiva e triagem que potenciam a reciclagem dos materiais. Equaciona-se agora a modulação desse ecovalor, no sentido de premiar as embalagens “boas” (com certo teor de material reciclado, por exemplo) e penalizar as “más”.

Para o têxtil, poderá vir a haver exoneração do ecovalor caso o vestuário respeite certos critérios ambientais. Segundo a APA, o Governo tem até final de 2022 para estudar “a introdução de um sistema de verificação e autentificação da durabilidade dos bens têxteis”, podendo eventualmente, “no caso de esta se verificar, excluí-los das obrigações [decorrentes da integração do têxtil num sistema de RAP]”. Ou seja, a fast-fashion pagaria a integralidade do ecovalor, ao passo que um artigo comprovadamente durável poderia ser exonerado. Em França é isso que acontece. Os têxteis (e calçado) que obedecem a critérios de durabilidade beneficiam de abatimentos, sendo que a integração de pelo menos 15% de matéria-prima reciclada dá direito a 50% de redução no ecovalor.

A entrada em vigor do esquema RAP em França, em 2009, permitiu aumentar consideravelmente a recolha seletiva. Antes da RAP, estimava-se que a quantidade de roupa e calçado recolhidos seletivamente (por organizações privadas) correspondia a 20% da totalidade de material têxtil colocada anualmente no mercado. Em 2019, essa percentagem terá chegado aos 41%. (1)

Falta precisar que, depois do estudo (final de 2022) e da formulação da lei (final de 2024), é preciso contar mais dois anos (final de 2026) até à entrada em vigor da RAP para o têxtil em Portugal.

Muito têxtil e pouco mercado

Enquanto o esquema aguarda formulação legal, os SGRUs (Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos) já começaram a estudar a matéria. Se o atual funcionamento do fluxo de embalagens pode servir de modelo ao futuro esquema do têxtil, caberá aos SGRUs a recolha seletiva e a triagem do novo fluxo, mediante transferências financeiras pagas pela futura entidade gestora (ou entidades gestoras). A Resíduos do Nordeste, empresa intermunicipal que serve 13 municípios em Trás-os-Montes, regista elevado teor de resíduos têxteis nos resíduos indiferenciados que recolhe: 9%, o dobro da média nacional. Nesta região de baixa densidade populacional não abundam os contentores para doação de roupa. E muitos dos materiais identificados (tapetes, alcatifas, estofos de sofá) não poderiam, note-se, ser valorizados por essa via.

A situação preocupa Bárbara Rodrigues, responsável pelo Departamento de Qualidade, Ambiente e Segurança da Resíduos do Nordeste, sobretudo porque nas atuais condições de mercado estes têxteis não têm valorização possível. A responsável relata que a empresa tentou, em 2019, montar um projeto de valorização do fluxo têxtil. No entanto, não foi possível identificar empresas interessadas em absorver os têxteis pós-consumo que viriam a ser recolhidos seletivamente. Potenciais problemas de contaminação e a má qualidade das fibras foram as razões apontadas pela indústria de componentes para os interiores de automóveis, importante consumidora de desperdícios têxteis mas que prefere ir buscá-los a montante, às fábricas, ainda limpos.

Esta experiência levanta uma questão fundamental: o que vai acontecer aos têxteis que vierem a ser recolhidos seletivamente? Se a Resíduos do Nordeste não conseguiu fechar o ciclo dos têxteis, quais serão as opções da futura entidade gestora deste fluxo específico?

Exportação insustentável, reciclagem inviável

A legislação em vigor não permite aos SGRUs vender resíduos para fora do país. Por isso a Resíduos do Nordeste não pôde considerar esta opção. No entanto, é na exportação que repousa o modelo de negócio das organizações privadas que recolhem têxtil usado. A Cooperativa Esperança (Cáritas) exporta 90% do que recolhe. Na Humana Portugal, a percentagem anda pelos 75% – a rede de 13 lojas gerida pela organização permite revender parte das doações. (2)

Mas mesmo que uma futura entidade gestora tenha licença para escoar têxtil para o mercado internacional, essa opção não é desejável. Os artigos acabam muitas vezes por ser revendidos a preços baixos em países em desenvolvimento; a asfixia da produção local é um dano colateral da abundância de refugo têxtil proveniente do Norte. Por outro lado, Portugal não estará sozinho na procura de destino para os seus têxteis usados a partir de 2025; outros países europeus vão começar a aplicar a diretiva de recolha seletiva da UE e o mercado da roupa em segunda-mão corre riscos de ficar saturado.

Poderá a reciclagem absorver o que se prevê ser um forte aumento da disponibilidade de têxteis usados? Uma coisa é certa: atualmente, pouco ou nada daquilo que colocamos nos contentores de roupa usada tem como destino a reciclagem em território nacional.

Existem em Portugal três empresas de reciclagem têxtil: a Sasia e a Recutex em Famalicão, e a Jomafil na Covilhã. São todas veteranas, com mais de 50 anos de existência. A Jomafil fabrica feltros, tendo como principal cliente a indústria automóvel, que os utiliza, entre outras coisas, para insonorizar os habitáculos. O diretor da empresa, Nuno Madeira, surpreende-se quando o confrontamos com a ideia de que em Portugal não existe capacidade para reciclar têxtil. A Jomafil só trabalha com desperdício e até precisa de importar 40% da matéria-prima para garantir as suas 600 toneladas mensais de produto, garante. A empresa desenvolveu até um equipamento para retirar fechos e botões às peças. Mas esta máquina está quase sempre parada. Capacidade existe; não existe é viabilidade económica.

Triar roupa usada por cor e fibra, retirar acessórios – o trabalho é moroso e, desta feita, caro, encarecendo também o produto final. No passado, a Jomafil fez feltros com fardas do exército, e mais recentemente aplicou o processo às fardas descontinuadas de uma grande superfície. “Nós reciclamos tudo, desde que nos paguem”, resume Nuno Madeira.

A futura taxa a ser paga pelos fabricantes e distribuidores poderá ajudar a equilibrar a equação.

No entanto, para além da viabilidade económica, a reciclagem têxtil enfrenta também desafios técnicos. Muita da roupa que usamos é composta por uma mistura de fibras, e com estes inputs os processos de reciclagem mecânica não conseguem produzir fio com qualidade suficiente para fabricar novo tecido. São a indústria automóvel e a da construção os grandes clientes da reciclagem têxtil, não a própria indústria da moda.

Reciclagem química, santo graal ou miragem?

Estaremos num beco sem saída, condenados à linearidade neste setor? É aqui que entra em cena a reciclagem química. Esta tecnologia, sobre a qual recaem muitas esperanças, está ainda na infância. A ação de solventes químicos no vestuário permitiria recuperar, com a qualidade original, pelo menos uma das fibras componentes – e assim, finalmente, tecer roupa nova a partir da velha. Multiplicam-se os projetos de investigação e as infraestruturas piloto neste campo. O CITEVE (Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal) espera poder beneficiar de verbas do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) para levar a cabo uma dessas experiências. Conta-nos Ana Tavares, coordenadora da Agenda Estratégica para a Sustentabilidade e Economia Circular no CITEVE, que o projeto se foca na reciclagem química de fibras derivadas da celulose vegetal (algodão, liocel, modal, viscose), pretendendo instalar pilotos deste tipo de processo, algo nunca tentado no nosso país. Perante uma tecnologia que repousa inteiramente sobre processos e produtos químicos, resta saber até que ponto será possível proceder à dita reciclagem sem gerar, paradoxalmente, novos resíduos e nova poluição.

Todos os caminhos vão dar à prevenção

Vistas as quantidades de desperdício e os obstáculos técnicos, económicos e sociais à sua valorização, os caminhos que se apresentam ao setor têxtil para lidar com o fim de vida dos seus produtos não são de todo animadores. Assim, é preciso levantar o olhar para montante.

O consumo de roupa em segunda-mão tem margem para crescer em Portugal. Segundo um estudo internacional realizado entre 2018 e 2021 pela alemã Humana Kleidersammlung GmbH, os portugueses compram anualmente mais roupa nova por pessoa (20,8 kg) do que a média europeia (17,1 kg), e apenas 6% dos inquiridos reportaram ter comprado artigos em segunda-mão nos últimos 6 meses (a média europeia é de 21%) (3). A cultura da reutilização em Portugal é incipiente.

Reutilizar é uma forma de evitar novos consumos (e futuros novos resíduos), mas a lógica da prevenção vai muito para além de substituir o novo pelo usado. Trata-se, muito simplesmente, de consumir menos. No que ao vestuário diz respeito, há margem para decrescer. E esta mensagem não se dirige apenas, nem principalmente, ao consumidor. O European Environmental Bureau (EEB) lançou recentemente um apelo a propostas de investigação intitulado “The Wellbeing Wardrobe” (O Guarda-Roupa do Bem-Estar), com o objetivo de perceber como pode a abordagem do decrescimento e do bem-estar aplicar-se, na prática, ao setor têxtil. Tal implica explorar modelos de negócio alternativos, mas também modelos de governança e políticas públicas que possam “promover uma transição justa e planeada no sentido da contração da produção têxtil, para além de questões de eficiência material.” (4)

Em Portugal, a aplicação princípio da responsabilidade alargada do produtor (RAP) aos produtos têxteis permitirá desviar muito material da incineração e do aterro. No entanto, para abordar com seriedade o problema da sustentabilidade do setor, é necessário alargar o campo de aplicação desse mesmo princípio. Em linha com o que Lindhqvist, o pai da RAP na Europa, tinha originalmente em mente, a responsabilidade dos produtores deve abranger todo o ciclo de vida dos produtos, não apenas o seu fim de vida. (5)

(1) ADEME Déchets Chiffres clés 2020

(2) http://reutilizacaosolidaria.info

(3) https://secondhandcounts.wordpress.com/

(4) https://eeb.org/call-for-tender-the-wellbeing-wardrobe/

(5) Maitre-Ekern, Eléonore. 2020. “Re-Thinking Producer Responsibility for a Sustainable Circular Economy. From extended producer responsibility to pre-market producer responsibility”, Journal of Cleaner Production. https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2020.125454.

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